Artigo Luciano Ceotto: O ÔNUS DA PROVA DE DISPARO EM MASSA PARA CARACTERIZAÇÃO DE ABUSO DE PODER EM CAMPANHAS ELEITORAIS: Princípio do Interesse Público e Lisura Eleitoral

| Assessoria de Comunicação

A vedação à utilização não autorizada de dados pessoais não é matéria inédita no Direito Eleitoral. O tratamento de dados pessoais já estava presente em nossa legislação desde a reforma eleitoral de 2009 (ALMEIDA, 2022 - Conjur), que inseriu o art. 57-E na Lei n.º 9.504/97 trazendo a proibição de compra, venda ou cessão gratuita de dados cadastrais para candidato, partido ou coligação.

A utilização de dados pessoais, a estratificação do eleitorado em grupos cada vez menores, com identificação de semelhanças e preferências cada vez mais detalhadas vem ganhando relevância nas disputas pelo poder político.

Artigo escrito pela colunista do New York Times Zeynep Tufecki identificou que, após a reeleição de Obama em 2012, duas preocupações acerca do uso de grandes bases de dados pelas campanhas eleitorais passaram a intrigar o meio acadêmico e os atores políticos. A primeira é a de que as campanhas estão levando a persuasão num campo cada vez mais privado e invisível, que impossibilita a resposta adequada dos oponentes políticos e críticos. A segunda, a de que a ciência da persuasão está cada vez melhor, assim como a habilidade de manipular pessoas por meio do mundo digital, o que pode acarretar uma maior influência dos eleitores por meio de um apelo sobre as suas emoções e preconceitos. Em 2014, a mesma autora afirmou que a “política computacional” torna os anúncios eleitorais uma transação privada cada vez mais personalizada, modificando a esfera pública para torná-la cada vez menos pública.

Já no ano de 2016, a campanha igualmente vitoriosa de Donald Trump mostrou ao mundo a história da criação e do business da Cambridge Analítica. Esta empresa utilizando de ferramenta de interface do Facebook e do microdirecionamento da propaganda, revelou eficiente método de manipulação do eleitorado em que as campanhas direcionam mensagens cada vez mais individualizadas, instigando medos e preconceitos nos eleitores, livres da relativa moderação operada pelo escrutínio público.

Voltando ao Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que só passou a ter vigência plena a partir do ano de 2020, foi pela primeira vez testada em eleições no pleito de 2022. Cumprindo sua função de organizar, regulamentar e conduzir eleições, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) cuidou de publicar o Guia de Orientação para a Aplicação da LGPD nas eleições. Referido diploma explicitou em seu item 147 que: “A propaganda também pode ser enviada por aplicativos de mensagens instantâneas, vedada a contratação de disparo em massa “sem anuência do destinatário”. Em qualquer caso, deve ser assegurada a possibilidade de “descadastramento” (Res. TSE nº 23.610/2019, art. 28, IV; arts. 33 e 34)”.

Nessa toada, seguiu o a linha que já era adotada desde a reforma de 2009, que limitava a utilização de cadastro de eleitores como forma de garantir a isonomia de oportunidades na propaganda eleitoral e redução do custo das campanhas. Já sob a égide da LGPD acrescentou-se a tais elementos a necessária proteção de dados individuais, especialmente, dados sensíveis, garantindo os direitos fundamentais de respeito à privacidade e da autodeterminação informativa. Então, se num primeiro momento a restrição à utilização de bases de dados tinha como sujeito de direitos os postulantes do certame eleitoral, agora, a proteção tem como finalidade a proteção individual do eleitor e dos seus dados sensíveis, tal como enunciado na LGPD.

O pleito de 2022 foi pródigo na ocorrência de “disparos em massa” de propaganda eleitoral. A utilização de ferramentas de SMS – Short Message Service e de aplicativos de mensagens instantâneas como o Whatsapp revelaram-se meios eficazes e baratos para fazer chegar a publicidade de partidos e candidatos ao eleitor. Embora a utilização de tais meios não seja vedada por Lei ou pelas resoluções que disciplinam a propaganda eleitoral, a utilização lícita de informações pessoais para a composição de bancos de dados depende do consentimento expresso do seu titular. 

O disparo em massa é conceituado como: “envio, compartilhamento ou encaminhamento de um mesmo conteúdo, ou de variações deste, para um grande volume de usuárias e usuários por meio de aplicativos de mensagem instantânea (art. 37, inc. XXI da Resolução TSE 23.610)”. Nesse contexto, a utilização de informações pessoais obtidas e utilizadas sem a anuência expressa do eleitor importa em conduta ilícita, repelida tanto pelo ordenamento eleitoral (art. 57-E, § 1º, da Lei nº 9.504/1997 e art. 31, § 1º, da Res. TSE nº 23.610/2019), como também pela LGPD, que reforça a proteção da intimidade ao condicionar o tratamento de dados pessoais ao consentimento do seu titular (art. 7º, inc. I, Lei 13.709/2018 - LGPD).

Todavia, a aplicação judiciária dos princípios e normas regulamentadoras da utilização de bases de dados na seara eleitoral ainda vem encontrando resistência por parte da justiça especializada que, até o momento, tem resistido à imposição de multas e cassação de registro de candidaturas por ausência de provas do volume de mensagens enviadas apto e suficiente para demonstrar o uso maciço de informações pessoais sem o consentimento dos seus titulares (Rp. n.º 0600103–54.2022.6.26.0001 – TRE/SP e Rp: n.º 0606011-58.2022.6.13.0000 TRE/MG). Também tem sido infrutíferas as ações apresentadas perante a Justiça Eleitoral mercê da falta de provas de que houve movimentação atípica de mensagens inclusive quanto ao uso de automação (Rp. n.º 0601989-97.2022.6.15.0000 – TRE/PB).

Com efeito, as mensagens eletrônicas e as mensagens instantâneas enviadas consensualmente por pessoa natural, de forma privada ou em grupos restritos de participantes, não se submetem às restrições impostas pelas normas sobre propaganda eleitoral (art. 33, §2º da Resolução TSE 23.610). Neste caso, a hipotética intromissão estatal em grupos fechados de debates virtuais poderia representar violação à liberdade de expressão. E isso, mesmo que lá fossem veiculadas informações fraudulentas ou desordenadas, porquanto esses fóruns privados não são objeto da restrição legal.

Entrementes, afigura-se que nos casos onde se apontou a ocorrência de disparos em massa, há confusão entre as funções administrativas da Justiça Eleitoral com sua função contenciosa. É característica peculiar desse ramo do judiciário brasileiro a competência para a preparação, organização e administração de todo o processo eleitoral (GOMES, 2022). Sob essa perspectiva o Juiz Eleitoral sai da dogmática inércia para o dever de atuação de ofício, onde age independentemente de provocação de parte interessada exercitando o poder de polícia que detém. Conforme assinala Antônio Hélio Silva (citado por GOMES, 2022, p.101): importa perquirir se o juiz está sendo provocado para aplicar a Lei a um caso concreto com vistas a satisfazer direito subjetivo, ou se a norma lhe foi dirigida diretamente, exigindo-lhe o dever de agir para alcançar a finalidade normativa. Na primeira hipótese, “estaria o Juiz exercendo atividade jurisdicional, ao passo que na segunda estaria agindo na qualidade de administrador”.

A despeito da ausência de marcos fronteiriços bem definidos separando a atividade administrativa, portanto, voluntária da Justiça Eleitoral, da sua função judicante, há que se adotar postura de investigação ativa para a busca da verdade real, e não apenas incumbir a parte postulante de todo o ônus de provar a ocorrência de transgressões eletrônicas. Sobretudo porque o ambiente virtual é campo complexo e ainda relativamente desconhecido para o cidadão médio, que não dispõe do ferramental adequado para apresentar o grau de certeza probatória que vem sendo exigido pelas cortes eleitorais.

É certo que, em sua função contenciosa, o Juiz Eleitoral está adstrito ao princípio da demanda, pelo qual sua atuação está condicionada à provocação da parte e aos limites do pedido formulado. Mas, dadas as características peculiares do processo judiciário eleitoral, em especial, do art. 23 da LC n.º 64/90, que admite a formação do livre convencimento pela apreciação de fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções, como também dadas as circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, impõe-se postura processual ativa e inquisitória como forma de preservar a credibilidade das eleições. 

 Afigura-se-nos, então, que uma vez demonstrados indícios mínimos de disparos em massa qualificados pelo tratamento ilícito de dados pessoais, seja no exercício do poder de polícia, seja para garantir o interesse público e a lisura eleitoral, deve o Juiz imbuir-se do ofício investigatório e recorrer aos meios necessários para a completa elucidação do fato.

Não menos certo é que o art. 55-J, §1º da Lei n.º 9.504/97 enuncia o princípio da intervenção mínima. Tal diretiva tem como finalidade a preservação do conteúdo ideológico da propaganda e não os meios empregados para sua divulgação. 

Consta no Guia Orientativo de aplicação da LGPD no contexto eleitoral (elaborado pelo TSE - item 135) que o disposto no artigo acima citado serve para evitar a imposição de restrições que afetem a igualdade de oportunidades no processo eleitoral ou, ainda, como a exigência de menor interferência possível no debate democrático. Desse princípio, desdobra-se o da paridade de armas que atribui a todos os participantes da disputa igualdade formal de meios e oportunidades para alcançar o Poder.

É visto do mencionado art. 23 da LC n.º 64/90 que, em se tratando de contencioso processual eleitoral, os princípios reitores são os da legitimidade das eleições e do interesse público. Portanto, admitida a existência de indícios mínimos de disparo em massa, e, violação dos preceitos da LGPD, inadmissível a postura inerte do Juiz Eleitoral, devendo atuar, ao nosso ver, como sujeito ativo e interessado na realização de disputa limpa, isenta de vícios, corrupção ou fraude.

Eleições só são consideradas legítimas quando a comunidade reconhece e aceita algo como correto justo e adequado. Ressalta Dias (2008, p. 41) que a aceitação do resultado das urnas decorre de um “dever moral de obediência enquanto se respeitem as bases que a fundamentam e que essencialmente consistem nas opiniões, valores, crenças, interesses e necessidades de determinada comunidade”.

Naturalmente, a proteção de dados no contexto eleitoral passou em 2022 pelo seu primeiro teste empírico. A aplicação ainda incipiente dos preceitos da LGPD pelos Tribunais Eleitorais perpassa pelo amadurecimento de conceitos e pelo incremento técnico por parte dos órgãos auxiliares da Justiça. A dinâmica das ferramentas eletrônicas de manipulação eleitoral, em especial, daquelas que ensejam o sugestionamento de voto só pode ser regulada pela ação preemptiva estatal, que deve ser dotada dos meios necessários para o combate às transgressões no meio virtual.

 

Luciano Ceotto - Advogado

Compartilhar Conteúdo